Em Literatura Obscura, falaremos sobre:
- Literatura Vampirica
- Expressionismo e Literatura
- O Romantismo/Iluminismo
- O Simbolismo
- O Decadentismo
São cada vez mais numerosos os livros e os filmes em que o vampiro é tratado como um ser dotado de características bastante humanas. Ainda que encontremos principalmente filmes em que ele tem por objetivo apenas matar o maior námero possível de pessoas, uma característica notável no modo como o mito do vampiro foi transformado ao longo do século XX foi justamente a sua “humanização”. Isso é visível mesmo em filmes que interessam mais pelas cenas de lutas e de ação, como, por exemplo, Underworld e Blade. … interessante notar que essa visão particular do vampiro é bastante recente e parece estar vinculada principalmente ás obras de Anne Rice e Chelsea Quinn Yarbro. … certo que elas tiveram grande responsabilidade na construção da imagem do vampiro não só como um ser bastante sedutor, o que já acontecia em alguns dos primeiros romances góticos em que essa figura aparecia, mas também, e principalmente, dotado de conflitos bastante humanos. Isso não quer dizer, evidentemente, que as duas autoras não adotem alguns dos clichís mais conhecidos das histórias de vampirismo, como por exemplo a vulnerabilidade á luz do sol. Ocorre, porém, que ambas incorporam elementos novos bastante significativos que determinarão, em grande parte, a imagem do que depois será considerado o vampiro “padrão”. Um exemplo bastante perceptível é a maneira como, ainda que de maneiras diferentes, ambas tratam de desvincular o vampiro de certas características provenientes de uma visão cristã do mundo. No caso dos vampiros de Rice, isso pode ser notado em algumas passagens em que personagens centrais pronunciam-se céticos sobre a possibilidade da existíncia de Deus, além de não sofrerem qualquer dano quando expostos a crucifixos e a outros artefatos do gínero. Além disso, é interessante notar que a autora atribui aos vampiros uma origem pré-cristã. Yarbro, por sua vez, vai ainda mais longe, ao fazer do sexo um aspecto bastante importante para seu St. Germain, que é acometido por enorme prazer ao tomar o sangue das várias mulheres com que se relaciona. … interessante notar que as mulheres em questão também se deleitam ao terem seu sangue drenado pelo vampiro. … importante notar que a associação entre o sexo, representado nas histórias de Yarbro pela drenagem do sangue, e a vida é algo recorrente em várias tradições pagãs, mas que o cristianismo por muito tempo buscou sufocar. Talvez não seja incorreto, então, ver aí um bom motivo para se considerar que a criadora de St. Germain seja bastante radical em sua concepção descristianizada do vampiro, já que ví aquilo que o define sob uma ótica essencialmente pagã. Se pensarmos que o vampiro, tal como visto na Europa medieval, tinha praticamente o aspecto de um cadáver em decomposição e era, em boa parte das vezes, apenas um mecanismo de bode expiatório para a morte do gado e outros fatos do tipo, não exige esforço notar que a maneira de concebermos o vampiro foi bastante alterada desde então. Mesmo os primeiros contos góticos, aos quais autores como Rice e Yarbro certamente devem muito de sua inspiração, viam nas figuras vampíricas representações de fatores bastante diferentes daqueles que elas representam na literatura contempor‚nea. Dois exemplos que podem ser ditos paradigmáticos, Drácula e Carmilla, podem servir para ilustrar esse fato. Para entender melhor o que está em jogo nesses dois romances, pode ser oportuno lembrar, ainda que de maneira breve, algumas características gerais que vemos nos primeiros contos góticos. De maneira geral, podemos dizer que eles procuram causar no leitor a mistura de trís elementos: o terror, ou a ameaça de dor física, o horror, ou confrontação direta com uma força repulsiva, e o misterioso, entendido aqui como a percepção intuitiva de que o mundo é muito maior do que poderíamos compreender por nossos poderes ou nossa compreensão. Talvez fosse por isso que, de maneira geral, a ambientação dessas histórias fosse tipicamente incomum. … o que vemos, por exemplo, em O Castelo de Otranto, de Walpole, considerado a primeira publicação gótica, bem como em vários outros do gínero. A atribuição do nome “gótico” a esse gínero remete ao uso de ambientações medievais e foi extraída justamente do fato de o primeiro expoente do gínero ambientar a ação em um velho castelo. Não por acaso, é exatamente essa a ambientação de Carmilla, pequeno conto escrito em 1872 por Sheridan LeFanu.
O fato de a história se passar em um castelo no campo, aliás, contribui para o isolamento que, pode-se dizer, complica a situação de Laura, a protagonista que é atacada pelo vampiro, até a chegada de um amigo da família que alerta para a possibilidade de um ataque por parte de uma criatura sobrenatural. Destaquemos, agora, alguns aspectos importantes para se observar ao que exatamente o vampiro representa no conto de LeFanu. Em primeiro lugar, deve-se perceber que o autor combina alguns aspectos bastante antigos do mito do vampiro com outros que parecem praticamente contemporaneos. Por um lado, Carmilla, o vampiro em questão, só pode escolher nomes que sejam anagramas de seu nome verdadeiro (Mircalla), algo que aparecia em algumas lendas e acabou sendo deixado de lado pela maioria dos escritores. Além disso, como vemos em outros contos góticos da época (como por exemplo o próprio Drácula, cujo autor certamente leu o livro de Lí Fannu), o vampiro, apesar de ter existíncia notívaga, pode circular durante o dia, apesar de ter seus poderes bastante reduzidos nesse período. Por outro lado, como muitos observaram, o interesse de Carmilla por Laura tem conotação bastante sexual, “lembrando a paixão do amor”. Ora, a associação entre vampiro e sexo é precisamente uma das características que perdura até nossos dias. No caso de autores da época, entretanto, não devemos perder de vista que as histórias de horror permitem que se trate do sexo de um modo que não seria possível por outros meios. Não se pode deixar de notar, também, outra característica de Carmilla que mais tarde influenciaria Bram Stoker quando ele escreveu seu Drácula: o vampiro aparece como um nobre antigo, representante de uma civilização que talvez tenha muito pouco com aquela para a qual o autor escreve. Além disso, mostra uma profunda aversão á religião instituída. Por fim, só pode ser destruído por meios que seriam considerados bastante supersticiosos pelos próprios personagens que se opõe a ele. Talvez esteja aí o ápice da tentativa de provocar aquelas sensações típicas do romance gótico, mostrando ao leitor uma situação em que seu mundo confortável com crenças bem estabelecidas, está desmoronando. Façamos agora algumas considerações sobre o romance de Stoker. Podemos dizer de início que uma de suas maiores inovações é trazer a história para a época contempor‚nea do autor, em uma cidade bastante conhecida pelo páblico a que o livro foi destinado. Temos aí o que talvez seja uma subversão bem calculada do que normalmente vemos nos primórdios da literatura gótica, já que o autor pretende trazer para sua própria época os horrores de tempos então já idos. Drácula, além disso, é um vampiro que mescla certas características então tradicionais com outras que, bastante inovadoras, parecem ter contribuído para delimitar a imagem que hoje se faz do vampirismo. Como Carmilla, tem grande aversão por símbolos da religião instituída que, no fim das contas, mais camuflam sua vulnerabilidade a símbolos sagrados. … curioso notar a vulnerabilidade de Drácula ao alho. As propriedades medicinais da planta eram vistas de modo bastante exagerado á época, o que sugere que o vampirismo, ainda que não fosse tratado necessariamente como uma doença estava associado á morte, não á pretensão bastante humana á imortalidade que vemos nos vampiros de histórias contempor‚neas. Aliás, a associação do vampiro com o mal e com a morte é um tema que aparece de maneira recorrente ao longo do livro. Um bom exemplo de sua associação com o mal aparece na cena em que Drácula obriga Mina Harker a beber seu sangue. Diferentemente do que vemos no filme, essa cena, no livro, assemelha-se a um estupro, de modo que a ínfase é na violíncia, não no sexo (e, definitivamente, não no romance).
Vale lembrar que o “estupro” em questão é apresentado simplesmente como uma força maléfica, não como um ato de uma alma torturada ou algo assim. Drácula, como o vampiro de LeFanu, é um nobre de tempos antigos, com profundo desprezo pelo que parece ser a civilização em que vivem os leitores de Stoker. Com relação á sua morte, como nos lembra Melton, “Nem os poderes empossados, um forte herói aou a modena ciíncia puderam diminuir, muito menos impedir, a disseminação daquele mal. Não fosse a intervenção do devoto da sabedoria não-convencional e sobrenatural (Abraham Van Helsing), o mal teria se espalhado impunemente pelo centro do mundo civilizado e incrédulo”. Vejamos se é possível acrescentar algo mais a essas considerações sobre Drácula. … interessante notar que, enquanto em Carmilla, por mais que a “sabedoria não-convencional” triunfe no fim, o que é apresentado ao leitor é uma situação que ocorre em um universo isolado do que na época seria considerado “o mundo real” ou algo que o valha. Ao colocar o vampiro, com todo o mal que ele representa, na Londres vitoriana, Stoker cria uma situação em que a própria estrutura social vigente era desafiada por um mal vindo de tempos antigos. Não queremos sugerir que haja em Drácula algo como uma postura política nas entrelinhas. O intuito aqui é apenas mostrar de que maneira o transporte da figura do vampiro para um ambiente mais familiar ao leitor foi um modo bastante eficiente de acentuar certos efeitos buscados á exaustão por autores góticos da época. Tudo isso dito, vejamos o que se pode concluir sobre a evolução da figura do vampiro dos primeiros romances góticos até hoje. Em primeiro lugar, pode-se ver nitidamente que, nos primeiros escritos góticos, ele era uma figura que representava essencialmente um mal que podia se infiltrar na sociedade de maneira bastante insidiosa (é evidente até para o leitor mais casual de Drácula, Carmilla ou The Vampyre que eles eram certamente monstros, mas podiam se misturar com facilidade á vida social). Isso não pode ser confundido com a maneira pela qual muitas vezes os vampiros de histórias contempor‚neas, quase sempre tão humanizados, encarnam de maneira vivaz o desejo pela imortalidade. A humanização do vampiro, aliás, talvez deva muito ao fato de vivermos em uma época em que a busca pela imortalidade seria uma alternativa para uma vida, por assim dizer, mais vazia de sentido.
Com o enfraquecimento de várias instituições e, além disso, com a proliferação de filosofias niilistas, é comum que tenha mudado a maneira como as pessoas se relacionam com a morte e também com a religião. Isso nos leva a um outro ponto em que o vampiro da velha literatura gótica se diferencia do que vemos nas histórias atuais é o fato de ter havido, como já foi observado, uma descristianização do mito. Como vimos, o ajuste de contas com o cristianismo parece ser um aspecto importante tanto de Drácula quanto de Carmilla, e isso é algo que vemos muito pouco na literatura gótica atual. Ainda que escritores góticos contempor‚neos muitas vezes tratem de assumir em suas obras posturas bastante duras no que diz respeito á religião instituída, a própria figura do vampiro não parece ser concebida como um modo de simplesmente ajustar contas com a tradição cristã. Isso é particularmente visível no caso de St. Germain, que, como esperamos já ter mostrado, é concebido como uma criatura que toma o sangue das vítimas por motivos que tem, por parte de Chelsea Quinn Yarbro, inspiração inegavelmente pagã. De qualquer maneira, não se pode negar que, além da perda de influíncia por parte da Igreja sobre o que se pode ou não escrever, o fato de já haver algo como uma rejeição do cristianismo por parte dos vampiros que vemos na literatura gótica mais antiga certamente contribuiu para algo como um processo de descristianização. … claro que não se pode negar que praticamente todas as lendas de vampiro, em qualquer lugar e época, compartilham algumas características. Todas elas, por exemplo, estão de algum modo relacionadas á morte. Além disso, a imensa maioria das figuras vampíricas nas lendas e na literatura tem grande predileção pela existíncia noturna, ou chega mesmo a ser bastante vulnerável á luz solar. No fim das contas, entretanto, talvez o que garanta a imensa longevidade do mito do vampiro seja justamente a capacidade que ele tem de se adaptar, de modo a representar, ainda que com algumas alterações, os maiores medos e ansiedades de praticamente qualquer grupo social.
Bibliografia:
LeFannu, Joseph Sheridan, "Carmilla"Melton, J. Gordon, "O Livro dos Vampiros" Punter, David, "The Literature of Terror" Rice, Anne, "Interview with the Vampire" idem, "The Vampire Lestat" idem, "The Queen of the Damned" Stoker, Bram, "Dracula"Thompson, G. R., "The Gothic Imagination: Esays in Dark Romanticism" Yarbro, Chelsea Quinn, "Hotel Transylvania" idem, "The Palace" idem, "Blood Games"idem, "Path of the Eclipse"idem, "Tempting Fate"idem, "The Saint Germain Chronicles"
Expressionismo e Literatura:
É comum vermos o termo expressionismo associado a artes como a pintura e o cinema. No caso da primeira, o leitor certamente se lembrará, por exemplo, do quadro O Grito, de Edward Münch, que retrata um homem desesperado sobre uma ponte. Do mesmo modo, filmes como Nosferatu, (a primeira versão, de Murnau, que data de 1922) são reconhecidos por todos como expoentes da influência expressionista sobre a sétima arte. Entretanto, não são comuns, ao menos fora dos círculos de estudiosos ou de pessoas com algum interesse específico nesse movimento, discussões referentes à repercussão que o expressionismo teve na literatura. Isso não quer dizer, entretanto, que não há uma quantidade nada desprezível de autores bastante reconhecidos que foram, para dizer o mínimo bastante influenciados por esse movimento. Alguns nomes de peso, como, por exemplo, James Joyce, T. S. Elliot, Franz Kafka e Georg Trakl (este último mais comumente reconhecido como sendo um expressionista) certamente escreveram trabalhos carregados de características que não podem ser dissociadas desse movimento. Ora, o que se quer dizer, entretanto, quando se afirma que determinado autor ou determinada obra literária é expressionista? Parece conveniente que iniciemos nossa resposta recordando algumas características universalmente reconhecidas como tendo sido exaltadas por esse movimento ou, antes, essa postura diante da arte. Como se sabe, o expressionismo procura retratar emoções intensas, principalmente a dor, a angústia. Na pintura, o emprego de figuras fisicamente deformadas para mostrar estados de espírito no mínimo turbulentos é uma constante. Além disso, como nos lembra Kasimir Edschmid, ainda que tenha nascido na Alemanha e lá se desenvolvido com mais força, o expressionismo “é supranacional. Ele não é somente assunto da arte. É exigência do espírito. Não é programa de estilo. É um problema da alma. Uma coisa da humanidade”. A intenção dos expressionistas de retratar estados bastante profundos e obscuros da alma, bem como sua preocupação em ser, digamos, não apenas arte implicam, como não poderia deixar de ser, em uma recusa decidida dos padrões tradicionais de beleza. Isso, aliás, se explica também pelo esforço realizado pelos impressionistas de se opor ao objetivismo naturalista que até então havia imperado. Para eles, o que importará e a expressão do mundo interior do artista. As reações provocadas pelo mundo interior do homem interessarão tanto quanto aquelas provocadas por eventos exteriores. A humanidade era vista pelos expressionistas como estando imersa em um verdadeiro caos, resultante de sua submissão ao progresso científico e, conseqüentemente, ao materialismo.
Esse progresso, aliás, contrastava, para eles, com o proletariado, destituído de qualquer possibilidade de desfrutar dos benefícios trazidos pelo progresso. Foi também com o intuito de combater essa situação que os expressionistas pensaram seu movimento como algo que pudesse abranger o desespero humano, recusando qualquer padrão anterior. Isso posto, é possível dizer que o expressionismo é, como a ciência desenvolvida por Sigmund Freud ou a filosofia de Friedrich Nietzsche, cria da virada do século XIX para o XX, época inegavelmente conturbada. Freud, por sinal, parece ter sido valorizado por partidários desse movimento, já que sua psicanálise pôde ser vista como um aparato valioso para se compreender aspectos mais obscuros da psique humana. Do mesmo modo, os expressionistas se apropriaram da fenomenologia de Husserl, que era principalmente um estudo do eu. Ainda que talvez não tenham lido as obras desses autores com o devido rigor, os expressionistas certamente não ignoraram o impacto que suas obras teriam sobre a maneira de se conceber o ser humano. Vejamos, agora, algumas características que os escritores influenciados pelo expressionismo empregaram a seus romances para satisfazer sua intenção de retratar de maneira intensa a vida interior de suas personagens. A linguagem usada por eles é habitualmente bastante direta, com frases relativamente curtas. Ainda assim, esses autores primam pelo uso de linguagem bastante abstrata, simbólica e associativa. É comum, também, o uso de metáforas exageradas ou grotescas. Além disso, vemos nas obras desses autores um grande esforço no sentido de descrever a vida interior de seus personagens e seus fluxos de consciência. Um bom exemplo desta última característica pode ser encontrado, digamos, logo na abertura de Retrato do Artista quando Jovem, de Joyce, em que o protagonista discorre longamente sobre sua infância, passando de um tema a outro aparentemente por livre associação. T. S. Elliot, por sua vez, nos oferece bons exemplos de explorações do subconsciente em poemas como Portrait of a Lady e Rhapsody on a Windy Night. Ainda que o expressionismo se pretenda um movimento que busca retratar o sofrimento puramente humano e busque ser transnacional, não se pode ignorar que, até por sua origem em um momento social bastante conturbado e sua recusa veemente de padrões sociais ou estéticos impostos pela burguesia da época, ele não pode ser separado de certas intenções transformadoras. É verdade, por exemplo, que obras como A Metamorfose ou O Processo, de Kafka, retratam, com o uso de situações inusitadas e bastante desconcertantes, uma angústia que poderia ser dita simplesmente humana, e é verdade que essa angústia é descrita boa parte das vezes de maneira bastante crua. É verdade também que A Metamorfose exemplifica muito bem o uso deliberado de uma situação grotesca para retratar, então, os sentimentos no mínimo desconfortáveis vividos pelo protagonista. Ainda assim, talvez seja possível ver nessas obras um que de denúncia. Não haveria uma crítica dura nas descrições das atitudes da família do protagonista em A Metamorfose? E que dizer, também, do modo como é tratado, mesmo sem saber por que, o protagonista de O Processo? Para os expressionistas, a opressão e a injustiça inerentes a uma sociedade em que predominam os valores burgueses parece ser inseparável do progresso científico e tecnológico que foram capitaneados principalmente por essa classe. Não devemos nos esquecer de que, para falar do que é puramente humano, parece no mínimo interessante atacar aquilo que impede que nos reconheçamos como puramente humanos, e problemas sociais turbulentos certamente estão entre os fatores que causam esse tipo de dificuldade, à medida que as pessoas se reconhecem como membros desta ou daquela classe, deste ou daquele país e assim por diante. Mais do que isso, não devemos nos esquecer de que o expressionismo tem sua origem em um período socialmente turbulento e é, desde seu início, uma resposta a um conservadorismo que certamente abraçava a ideologia do progresso e, como bem sabemos, não estava particularmente interessado nos custos sociais desse progresso. É natural, então, que os expressionistas, de maneira geral ao menos, tenham realizado, ainda que em diferentes graus, ataques à ideologia do progresso que, pouco tempo antes, poderia ser considerada hegemônica. Podemos encontrar um exemplo disso, ainda que seja um exemplo quase demasiado sutil, em alguns poemas de Trakl, que fala, por exemplo, na loucura da cidade grande, mas usa um tom saudosista e aparentemente mais amigável ao falar de ambientes mais bucólicos em poemas como Abendlied. No fim das contas, pode-se dizer que a maneira como o expressionismo se manifestou (e, de certo modo, manifesta-se até hoje) na literatura refletiu a tentativa, por parte dos escritores influenciados por esse movimento, de realizar em seus textos as mesmas finalidades que foram perseguidas por expressionistas que praticavam outras formas de arte. A intenção transformadora que vemos em boa parte dos partidários do movimento parece mais atual do que nunca hoje em dia.
É importante notar, além disso, que a valorização da vida interior dos personagens e de fluxos de consciência talvez tenha sido uma contribuição definitiva e de valor incalculável a autores mais contemporâneos. Talvez não seja um grande exagero dizer que, nos últimos tempos, mais do que apenas contar uma boa história, a literatura busca grandes personagens, e estes não existem sem conflitos genuinamente humanos. Ou talvez apenas, para nossos gostos contemporâneos, não seja possível se contar uma boa história sem bons personagens... E a vida nestes tempos parece dura e conflituosa demais para que sentir o que quer que seja por qualquer personagem plano ou estereotípico demais.
Bibliografia introdutória recomendada: Edschmid, Kasimir, Expressionismo na Poesia; Elliot, T. S., Portrait of a Lady; Elliot, T. S., Rhapsody on a Windy Night; Joyce, James, Portrait of the Artist as a Youngman; Joyce, James, Ulysses; Kafka, Franz, A Metamorfose; Kafka, Franz, O processo; Trakl, Georg
O Romantismo:
A maior parte das pessoas associa o romantismo a nomes como Byron, Shelley e Álvares de Azevedo. É freqüente, então, que esse estilo normalmente seja visto como bastante sombrio. Não falta quem acredite que os textos românticos tratem principalmente da morte, da noite e de outros temas desse tipo. Além disso, é fato que quase sempre a palavra “romântico” se associa a paixões desmesuradas. Trata-se, como tentaremos mostrar aqui, de uma visão que, ainda que não esteja por si mesma equivocada, não dá conta da diversidade que esse movimento literário atingiu. Podemos dizer, de início, que se trata de um movimento de vanguarda, surgido na Europa por volta de 1800. Foi uma reação ao iluminismo e, talvez em menor escala, ao neoclassicismo. Sabemos que este último, como o próprio nome já indica, buscou resgatar certos valores da antigüidade grega e romana, o que valeu tanto para o rigor formal praticado por seus adeptos quanto para a temática que podia ser vista nas obras.
O iluminismo, talvez o maior alvo dos autores românticos, tinha, por sua vez, uma visão extremamente otimista do homem, que era apresentado por autores desse movimento como um ser primariamente bom. Outra característica do iluminismo era a grande valorização da razão. Para os iluministas, o homem seria um ser cosmopolita que, além de ter praticamente a obrigação de buscar conhecer racionalmente tudo que fosse possível, deveria exercer ao máximo sua sociabilidade. Além disso, pode-se dizer que a concepção iluminista de qualquer forma de arte incitava a um rigor formal nada desprezível. Textos de crítica de arte do período iluminista tipicamente versam sobre que procedimento faria de uma obra a mais apropriada para, em função dos efeitos que exerceria sobre uma natureza humana imutável, receber a aclamação universal. Um bom exemplo pode ser encontrado no Elements of Criticism de Henry Home, Lorde Kames. Tendo surgido como reação a essa maneira de se conceber o homem e a arte, o romantismo, de maneira geral, firmou-se como um movimento que valorizava as paixões exacerbadas e tudo o que fosse misterioso ou místico. Além disso, teve caráter notoriamente nacional, tendo-se desenvolvido de maneira muito diferente nos diferentes países em que surgiu. Na Inglaterra, por exemplo, consistiu principalmente de literatura popular, feita para se atender aos anseios da burguesia. Na França, por outro lado, adotou um bom mais moralizador, talvez por influência dos liberais conservadores. Na Alemanha, exaltou o individualismo e os valores nacionais. De qualquer maneira, o romantismo resulta, em todos os casos, em obras nas quais predominam paixões intensas, fervorosas. Talvez seja isso que permite ligar, por exemplo, obras como a de Byron, a de Jane Austen e a de Goethe. É interessante notar, também, a maneira como o amor é tratado por entusiastas do romantismo: trata-se quase sempre de algo que praticamente consome por completo os indivíduos acometidos por ele. É importante notar, porém, que isso nem sempre tem efeitos devastadores: se o Werter de Goethe é levado a uma situação da mais desoladora inclusive por conta dessa paixão, a Elizabeth que protagoniza Pride and Prejudice, de Austen, além de ser uma heroína bastante espirituosa, decidida e bastante rebelde para seu tempo, encontra, ao fim da história, felicidade genuína ao ver concretizadas suas expectativas amorosas. Outro aspecto inerente ao romantismo foi a valorização da Idade Média que pôde ser vista em boa parte de seus autores. Talvez isso se explique pelo fato de ter sido ele um movimento que, prezando as paixões exacerbadas, valorizaria naturalmente um período naturalmente associado a aventuras e ao heroísmo. Além disso, não devemos nos esquecer que o fato de os românticos terem certo gosto pelo mistério certamente faria com que se voltassem para um período em que a razão não era universalmente aclamada.
No Brasil, como bem sabemos, o romantismo pode ser dividido em basicamente três fases, ou gerações. O início do movimento (e, portanto, também da primeira geração) acontece com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves Dias. Publicada apenas quatorze anos após a independência, a obra da início a uma fase em que a literatura valoriza o nacionalismo e a liberdade, refletindo um momento em que o país, então recém libertado, precisava ainda tratar de construir algo como uma identidade nacional. É comum, nessa fase, a valorização da figura do índio, já que não tivemos por aqui algo como uma Idade Média. A segunda geração, cujo maior expoente provavelmente foi Álvares de Azevedo, é habitualmente chamada ultra-romântica e está mais próxima da imagem que comumente se faz do romantismo. Bastante influenciado por Byron, o autor tratou à exaustão de temas bastante sombrios e de amores desesperados. Tivemos, por fim, a terceira geração, também chamada condoreira, notabilizada por seu idealismo. Muitos dos autores que a constituíam participaram, por exemplo, de movimentos pela abolição da escravatura. Vale a pena notar que é nessa fase que surge aquele que, para desgosto de alguns, é considerado o primeiro grande romancista brasileiro, José de Alencar. Tudo isso dito, talvez seja oportuno buscar compreender de que maneira alguns aspectos do romantismo foram, por assim dizer, esquecidos, o que resultou na imagem que esse movimento manteve até nossos dias. Em primeiro lugar, como já vimos, podemos simplesmente dizer que essa não é uma imagem completamente errônea. Qualquer um que leia boa parte do que foi escrito por Byron ou por Álvares de Azevedo, bem como ao menos alguns dos textos escritos por Shelley, encontrará sem dúvida uma exaltação à noite, ao mistério e à morte, bem como a defesa de certo tipo de hedonismo decorrente da percepção que esses autores tinham da fugacidade da existência. Nos casos mais específicos de Byron e Álvares de Azevedo, pode-se perceber, por vezes, até mesmo um anti-cristianismo. Desse modo, não há qualquer problema em associar características como essas ao romantismo, desde que não se perca de vista que ele jamais se reduziu a isso. Além disso, é preciso notar que a literatura gótica teve seu berço no romantismo. Alguns dos grandes nomes do romantismo certamente colaboraram para que isso acontecesse.
Por exemplo, é bastante conhecida a história da noitada protagonizada por Byron, pelo casal Shelley e por John Polidori, que teria resultado no germe do que mais tarde seria o conto Frankenstein e em uma pequena história de Byron que depois Polidori transformaria no conto The Vampyre. Certamente a literatura gótica está muito próxima do tipo de clima e de temática que se associa comumente ao romantismo, e podemos pensar que isso contribuiu para definir que tipo de visão desse movimento seria preservado pela posteridade. Talvez isso não fosse aprovado, digamos, por Victor Hugo ou por Hölderlin, mas não há como negar que essa concepção não seria exatamente repudiada por um grande número de autores que certamente foram de suma importância para que o romantismo pudesse, ao tratar de aspectos do ser humano que o iluminismo mantivera sistematicamente silenciados, constituir um movimento consistente e de irresistível apelo popular.
O Simbolismo:
Era praticamente inevitável que movimentos artísticos e/ou literários como realismo e naturalismo provocassem reações. O estilo seco, por vezes quase científico com que eles apresentavam suas concepções do que seria o homem fatalmente desagradaria um número considerável de pessoas não apenas no meio literário, mas também no que dizia respeito ao grande público. Um dos movimentos que surgiram como reação ao realismo e ao naturalismo foi o chamado simbolismo, de que trataremos neste texto.
Por volta de 1881, artistas de todo tipo passaram a estruturar na França um movimento que sofreria certa influência da cultura oriental. Procuraram, então, incorporá-la em sua maneira de ver o mundo e, como não poderia deixar de ser, também no modo como escreviam, pintavam, compunham ou o que quer que fosse. Com a divulgação de um manifesto em 1886, esse movimento receberia o nome de simbolismo. Esse movimento, podemos dizer de início, tinha caráter inegavelmente místico e individualista. Alguns dos autores mais conhecidos que integraram esse movimento na França foram Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Ainda que Baudelaire possa, de algum modo ao menos, ser visto como um precursor, ele ainda não fazia parte, quando de seus primeiros escritos, de um movimento simbolista propriamente dito. Não é demais lembrar que As Flores do Mal, obra mais conhecida de Baudelaire, data de 1857 e, portanto, de alguns anos antes do que viria a ser propriamente chamado simbolismo. Isso não impede, evidentemente, que Baudelaire tenha tido, como sabemos, influência nada desprezível sobre os autores simbolistas.
Esse caráter é responsável por algumas das características mais evidentes que podem ser observadas na literatura simbolista. Em primeiro lugar, podemos dizer que o subjetivismo é uma das características mais básicas do simbolismo. Em detrimento da visão mais objetiva e fria da realidade que era apregoada por autores do realismo e do naturalismo, os simbolistas privilegiavam uma visão individual da realidade. A ênfase estava sempre na maneira como um determinado indivíduo percebia o mundo. Ainda que tenhamos aqui uma aproximação com o romantismo, ela não deve ser enfatizada em demasia: no caso do romantismo, o apelo era pura e simplesmente ao sentimento. No caso do simbolismo, o que vemos é ainda mais radical, já que os autores recorrem constantemente ao sonho e a algo que quase poderíamos dizer ser o inconsciente. Ainda que esse seja um conceito que ainda não está bem definido nos autores simbolistas, não seria exagero afirmar que eles mostram grande preocupação em, digamos, determinar de maneira mais profunda os processos mentais que constituem o eu, e isso é algo que não ocorria ainda no romantismo. Conciliar essa ênfase no indivíduo e a total recusa dos parâmetros realistas e naturalistas tem uma implicação quase evidente: os simbolistas abraçam a intuição para interpretar a realidade que os cerca. Fazem constantemente o uso da sugestão em lugar da objetividade. Criam em seus textos uma verdadeira atmosfera de sonho, recorrendo o tempo todo a palavras como névoa, bruma e outras do tipo. Nunca é demais lembrar, o que está em jogo é o tempo todo a percepção individual da realidade, sendo que o indivíduo é não necessariamente analisado. O que se pretende é que ele possa efetivamente expressar sua maneira de ver o mundo. O uso de expressões vagas, além de criar deliberadamente uma atmosfera onírica e misteriosa, talvez seja também um artifício para deixar claro que é impossível acessar diretamente as percepções e a visão de mundo de outrem. As portas para esse tipo de subjetivismo, vale lembrar, já estavam abertas desde a segunda metade do século XVIII, quando uma série de pensadores, ainda que reconhecessem que fosse possível construir um “chão comum” a partir do qual pensar o sujeito, a realidade e os problemas sociais, já aceitavam que o sujeito é o núcleo a partir de cujas percepções a realidade seria, por assim dizer, construída. Além disso, a inspiração mística que percebemos no simbolismo não poderia deixar de lado o fato de que, de maneira geral, a experiência mística é sempre tida como algo invariavelmente individual.
Convém notar que isso não é negado nem por autores que se dedicaram à filosofia e, portanto, a um tipo de discurso que talvez não devesse estar interessado em misticismo ou ocultismo. Matias Aires, iluminista português, afirma só falar sobre a experiência mística porque não passou por ela (caso tivesse, simplesmente não teria como expressá-la apropriadamente). No século XX, Wittgenstein, que parece ter tido uma experiência desse tipo, basicamente cala no que diz respeito a ela em seu Tratactus Logico Philosophicus É interessante que nos detenhamos, agora, em alguns recursos literários empregados com freqüência por escritores simbolistas. A temática, como já deve ter ficado evidente para o leitor a esta altura, é predominantemente espiritual, até mística. Também se destacam passagens (e até obras) em que o eu lírico discorre longamente sobre suas próprias visões de mundo. Outra característica marcante é que a poesia simbolista apresenta sempre grande preocupação com a musicalidade. Isso se reflete em uma preocupação com a métrica maior do que poderíamos observar, por exemplo, no romantismo. Além disso, existem certos recursos que os autores simbolistas empregam constantemente para conferir uma sonoridade quase musical a suas obras. Os mais evidentes são, quase sem dúvidas, a aliteração, que consiste na repetição de letras ou sílabas em uma mesma frase (como, por exemplo, em “vozes veladas, volúpias dos violões), e a assonância, que é a repetição fônica de vogais (como, digamos, em “Na messe que estremece”). Uma outra característica que não podemos excluir em qualquer descrição do simbolismo é a sinestesia. Ao tentar descrever suas vidas interiores e percepções da realidade que sempre remetem a uma perspectiva particular, os autores simbolistas aplicam constantemente esse recurso, que consiste basicamente em descrever sensações que mesclam mais de um sentido, como por exemplo um “cheiro doce” ou um “grito vermelho”. É essencial notarmos que o emprego desse tipo de formulação está inserido em um contexto determinado, em que é preciso buscar formas originais para se descrever algo que não seria acessível pela linguagem mais convencional. Não é apenas uma brincadeira lingüística, mas a busca por meios para expressar certas instâncias que, até então, haviam passado praticamente despercebidas pela literatura.
Poderia parecer, pelo que foi dito até aqui, que o simbolismo se limitou à França. Ora, sabemos que não é verdade. Além das várias influências que as idéias simbolistas exercem até hoje, certamente numerosas demais para serem enumeradas em um texto como este, podemos mencionar, como autores verdadeiramente simbolistas em outras paragens, como Oscar Wilde e Symons, na Inglaterra, Rilke, na Alemanha (ainda que sua obra já apresente certos aspectos modernistas), Camilo Pessanha, em Portugal. Para encerrar, convém que façamos referência aos dois autores mais conhecidos do simbolismo brasileiro. O primeiro deles, Cruz e Souza, legou-nos uma obra que é por vezes carregada de misticismo e, por outras, concentrada no satanismo e no erotismo. Seus textos apresentam uma visão bastante trágica da existência, além de tentativas recorrentes de criar correspondências entre concreto e abstrato. Como curiosidade, podemos observar a verdadeira obsessão do poeta com a cor branca. O segundo autor que vale a pena mencionarmos aqui é Alphonsus de Guimaraens, que tem na morte da amada seu tema preferido. Seus versos são bastante melancólicos e têm uma musicalidade bastante evidente.
O Decadentismo:
Como o simbolismo, o decadentismo surge no final do século XIX como uma reação ao realismo e ao naturalismo. De fato, os dois movimentos se confundem boa parte do tempo e, até que os simbolistas emitissem um manifesto em 1886, autores que posteriormente passaram a ser considerados partidários do simbolismo eram chamados de decadentistas, de modo que era então considerado bastante pejorativo. Assim, os escritores simbolistas do final do século XIX podem ser considerados também os primeiros grandes expoentes do decadentismo. Vale dizer que esses autores terminaram por incorporar de maneira positiva a alcunha de decadentistas. Isso fica evidente quando um autor como Verlaine, por exemplo, cunha um verso como o famoso “Je suis l’empire à la fin de la décadence”. É claro que, de certa maneira, essa incorporação busca ironizar a maneira pejorativa como eram chamados. Como o simbolismo, o decadentismo se caracteriza pela adesão ao subjetivismo. Os autores decadentistas apresentam, ainda, grande interesse pelos aspectos místicos e misteriosos da existência. Um aspecto que parece não estar presente de maneira tão marcante no simbolismo, mas que possui importância notável nos escritos decadentistas, é a visão pessimista do mundo.
Além disso, o decadentismo parece se caracterizar por um maior preciosismo formal. Não que o simbolismo não empregasse artifícios de linguagem bastante engenhosos, por vezes até emprestados da poesia parnasiana. Ocorre, porém, que o decadentismo era ainda mais preocupado com os aspectos formais da linguagem. Isso fez com que ele fosse associado, pouco depois de sua origem, à idéia de esteticismo. A partir de 1890, o decadentismo espalhou-se por toda a Europa. Talvez isso se tenha devido ao fato de à sociedade da época estar tomada pelo cansaço e pelo tédio e, portanto, sequiosa por sensações novas, extravagantes até. Montalvor, em seu “Tentativa de um ensaio sobre a Decadência”, escreve, em 1916: “Somos os descendentes do século da decadência. Vamos esculpindo a nossa arte na nossa indiferença. A vida não vale pelo que é, mas pelo que dói... Só a Beleza nos interessa... Se nos apelidamos ou nos apelidaram de decadentes, é porque temos um sentido próprio de decadência.” Temos confirmada aqui, então, a visão pessimista do mundo e da existência que caracteriza o movimento decadentista. A visão do mundo como decadente e, em última instância, irrecuperável levaria inevitavelmente a uma visão de mundo segundo a qual “só a beleza interessa”. Mais ainda, resultaria de certa maneira no hedonismo. Essas características estão presentes já na obra que pode ser considerada o marco inicial do decadentismo, À Rebours, de Huysmans. DesEsseintes, o protagonista, é um homem que se isola da vida na corte e parte para apurar suas percepções sensoriais em todos os sentidos. Duas outras obras escritas posteriormente por Huysmans, En Rade e La Bas, compõem uma trilogia com À Rebours. Para confirmar, a idéia de certo hedonismo promovido por uma visão pessimista do mundo, convém lembrar que, em La Bas, Huysmans explora de maneira exacerbada temas como satanismo e sadismo.
É interessante notar que des Esseintes não parece ter sido concebido necessariamente como uma maneira de criticar a decadência da sociedade ou algo assim. O que parece perdurar não só em Huysmans, mas no decadentismo de maneira geral, é a sensação de que a decadência do mundo é um dado mais do que algo contra o que os autores buscam incitar o leitor. Ora, se fosse imperativo que se buscasse mudar a situação, talvez não fizesse sentido buscar refúgio apenas na beleza e nas percepções sensoriais. Outro aspecto bastante evidente em boa parte dos autores decadentistas é o caráter enciclopédico que vemos em suas obras. Além de evidenciarem boa parte do tempo sua erudição, os adeptos do decadentismo usam o tempo todo seu conhecimento das normas vigentes de estética e de linguagem para destruí-las de maneira mais eficiente. Isso resulta em vários experimentos com a linguagem e, reconhecidamente, no uso de vários neologismos. Esse é um aspecto que parece ter influenciado não apenas autores reconhecidamente decadentistas. Se por um lado podemos dizer que Augusto dos Anjos apresenta grande afinidade com esse movimento por conta de seus neologismos e das metáforas científicas recorrentes em sua obra, por outro o pendor para o enciclopedismo também pode ser encontrado, por exemplo, no Ulysses de James Joyce, e sabemos que este é um autor que não poderia ser enquadrado estritamente entre os decadentistas. Esperamos não ter dado ao leitor a impressão de que o decadentismo, enquanto algo como um movimento literário, esteve restrito à França. Conforme já foi dito acima, ele teve representantes por toda a Europa. Alguns exemplos são Hofmannsthal na Áustria, Pascoli, W. Pater, E. Dowson e O. Wilde na Grã-Bretanha, Ramón del Valle-Inclán na Espanha, os poetas hispanófonos do “modernismo”, do “modernisme” catalão, certos autores do simbolismo e pós-simbolismo português (Eugénio de Castro, António Nobre, Cesário Verde, Afonso Lopes Vieira, João Barreira, Gomes Leal, entre outros) e D’Annunzio, na Itália, considerado tão relevante para o decadentismo quanto o já mencionado Huysmans.
Ainda que o decadentismo, ao menos como movimento literário, não seja exatamente muito conhecido, parece ter estado sempre em voga desde então como um conjunto de preceitos, digamos, ideológicos. Um bom exemplo seria sua presença na obra do filósofo Emil Cioran. Mais recentemente, obras como Hell de Lolita Pille, parecem retomar avidamente temas caros ao decadentismo, ainda que sem o gênio formal de um Huysman. A recorrência dessa temática faz crer que, se por um lado o decadentismo como um movimento literário no sentido estrito parece estar encerrado em um passado já distante, ele apontou a existência de algo de podre que não se tem podido ignorar.